quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

NO DIA EM QUE QUASE TUDO DAVA ERRADO

Prezados, o texto abaixo é um pouco longo, mas, te afirmo que quando começar a ler, não dar mais vontade de parar. Recomendo com empenho a leitura.

Por Espedito Moreira de Mello (*)
Um pouco de História – Brasília estava nos primeiros anos de sua infância, seus passos eram vacilantes. Não obstante tão pouca idade, já fazia história: um presidente da República eleito, e há menos de um ano de empossado no cargo, renunciara; o sistema presidencialista havia sido substituído pelo sistema parlamentarista.
Na Capital, a Marinha do Brasil - MB, além da estrutura do Gabinete do Ministro da Marinha - GMM, contava com o então Comando Naval de Brasília - CNB para administrar as atividades de competência do também então Ministério da Marinha, em Brasília. Estavam subordinados ao CNB o Grupamento de Fuzileiros Navais de Brasília – GptFN/Br, localizado na Área Alfa, distante cerca de 35 km do Plano Piloto. Era um pequeno efetivo instalado em construções de madeira, as quais também serviam como uma espécie de hotel para os praças que serviam nas unidades do Plano Piloto e não tinham outro lugar para se instalar e fazer as refeições. A Estação Rádio era outra unidade organizada. Havia ainda uma pequena estrutura de saúde com clínica médica e gabinete dentário.
Por ocasião da mudança da Capital do Rio de Janeiro para Brasília – 21 de abril de 1960 – o atual prédio destinado à MB ainda não estava totalmente terminado, de modo que o GMM e o CNB se instalaram no segundo andar do prédio onde funcionava o então Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP.
No final daquele ano (1960), o prédio da MB ficou pronto. Realizou-se a mudança. O GMM ocupou todo o segundo andar, parte do terceiro, mais as duas sobrelojas. O CNB ocupou o nono andar e as instalações da garagem. Os demais andares (do 4º ao 8º) permaneceram sem ocupação alguma. Havia apenas um conjunto de armários medindo mais ou menos 2mx2mx0,40m cada unidade. Sua utilidade, além de acomodar objetos, era dividir os espaços formando dependências para os diversos setores de trabalho.
Com a mudança para o novo prédio, foi implantada a estrutura de segurança para proteção de suas instalações. A parte externa estava a cargo do GptFN/Br e a parte interna (geral) a cargo do próprio CNB. O grupo de segurança era composto por um oficial de serviço, um sargento contramestre, um cabo auxiliar, e vários outros elementos (marinheiros/fuzileiros navais). Todos os oficiais até o posto de capitão-tenente, independente da especialidade, concorriam à escala de serviço. As atribuições gerais de cada elemento estavam definidas em regulamento.
Nesse tempo, o futuro de Brasília parecia incerto. Na gestão do presidente Jânio Quadros não se assentou um único tijolo. A exceção foi aquele “pregador de roupa” construído na Praça dos Três Poderes para servir de morada aos pombos. O mesmo estava acontecendo na gestão seguinte. O GMM tinha reduzido boa parte de seu pessoal, principalmente os oficiais. O grosso do efetivo continuava no Rio de Janeiro. O CNB, comandado por oficial superior, apenas administrava o que já existia.
Carente de dependências para alojar o pessoal sem residência, a administração naval resolveu destinar o quarto andar para esse fim. Usou os armários citados para criar várias dependências com destinação específica: alojamento para suboficiais e sargentos, cabos e soldados, funcionários civis, pessoal de serviço, candidatos civis-voluntários (a marinheiro e a fuzileiro naval), um espaço só para servir de alojamento para o pessoal do GMM; e, por fim, um salão de recreio, espaço utilizado para atividades lúdicas nas horas vagas.
O causo – Era um dia de semana qualquer. Eu não estava na escala de serviço daquele dia.  Até que um mensageiro foi até o meu local de trabalho avisar-me de que, em virtude de o militar escalado estar impossibilitado de assumir o posto de contramestre, eu fora designado para substituí-lo. Nada de tão extraordinário. Era comum isso acontecer. Mas justamente para a noite daquele dia, eu tinha um compromisso social marcado. Teria de cancelá-lo. Chato. Justamente, porque, nesse tempo em Brasília, os eventos sociais eram coisa rara. Mas... Fazer o quê? Também, fazia algum tempo que eu não era escalado para aquela tarefa – acabara de regressar de merecidas férias.
            As formalidades para o grupo entrar de serviço eram simples. Antes do meio-dia todos os escalados se reuniam num determinado espaço; o oficial checava a lista. Apenas ele e o contramestre usavam arma de fogo – pistola .45. O cabo auxiliar portava um cinto de guarnição e um cassetete de borracha; os demais não portavam nada. Depois de algumas formalidades, todos voltavam aos seus postos de trabalho costumeiros, retornando efetivamente às tarefas de segurança, após o encerramento do expediente diário.
             Nesse dia, foi um médico que assumiu as atribuições de oficial de serviço. Era meu velho conhecido do tempo em que eu servia na Divisão de Saúde. Não demorou ele me confidenciar que depois do cerimonial de arriar bandeira iria se recolher a um local isolado para concluir relatório sobre uma tese que iria apresentar num congresso. Eu deveria contribuir para que nada o interrompesse. E, pela manhã, logo após a cerimônia de içar bandeira, ele iria para a clínica médica, que ficava fora das dependências do prédio, com a finalidade de dar o seu expediente. Para tanto, estaria autorizado.
            Certa ocasião, ele me segredara: “... Moreira, eu ingressei na Marinha voluntariamente,para ser médico, não para ser milico...” Eu sabia que ele detestava desempenhar as atribuições de oficial de serviço. Pensando nisso, tirei um tempo para dar uma lida nas normas que definiam as tarefas do pessoal de serviço. Dei atenção especial àquelas que se referiam ao início do tempo destinado ao recolhimento do pessoal para dormir e para despertar. Nisso, os milicos costumavam ser rigorosos.
            Para o funcionamento das dependências daquela “hospedagem”, não havia um ato administrativo formal, uma Ordem de Serviço, por exemplo. O que havia estava escrito numa ferramenta chamada “Plano do Dia”, mas emitida meses atrás. Entre as normas estabelecidas, havia as seguintes: ..) “Às 21:30 horas será observado silêncio absoluto nos alojamentos e nas demais dependências” ..) “Às 05:00 horas, todos devem obedecer o toque de alvorada”. A esse toque, executado pelo cabo auxiliar, todos, sem exceção, tinham que despertar e deixar a cama imediatamente a fim de dar início às atividades rotineiras. Logo adiante, havia uma tarefa: ..) “Às 05:00 horas deverá ser iniciada a limpeza e asseios dos banheiros...”. Essa tarefa vinha sendo feita pelos civis-voluntários. Havia aí um conflito: o sujeito levantava, ia ao banheiro fazer a higiene pessoal e se deparava com a dependência toda alagada. Confesso que desconhecia se já teria havido alguma reclamação a respeito. Anotei isso num pedaço de papel.
            Logo após a cerimônia da bandeira, o médico (oficial de serviço) me disse: “Moreira, assuma. Daqui até amanhã não estou para ninguém. Vou estar nesse lugar (mostrou o lugar), somente você sabe. Apenas me procure se for caso de absoluta emergência”. Tá. Tudo bem – respondi.
            O tempo passava sem irregularidades, até que por volta das 20 horas, “faltou luz” geral no prédio. Só no da Marinha, nos demais, não. Eu não tinha conhecimento se isso já ocorrera. De qualquer forma, havia um procedimento a fazer caso faltasse energia do prédio: “ligar para o Departamento de Força e Luz da Novacap” e solicitar providências. Para quem não sabe, Novacap é a sigla da Companhia Urbanizadora da Nova Capital, criada pelo então presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira em 1956, para administrar a construção de Brasília.
Antes de tentar entrar em contato com a Novacap, mandei o cabo-auxiliar cientificar o oficial de serviço sobre as providências que iria tomar.
Ligar para o departamento não foi difícil. Irritante foi esperar que alguém atendesse. Quando isso ocorreu, o interlocutor parecia solícito. A par do problema, informou que todas as equipes haviam saído para atendimentos semelhantes, de modo que não tinha uma prévia para atender o meu pedido. A reclamação estava registrada, a primeira equipe que regressasse seria encaminhada ao Ministério da Marinha, disse ele.
Nisso, eu quis saber qual a causa do apagão.
− É a sobrecarga do sistema. Há mais necessidade de consumo do que de oferta de energia.
− E o que vocês fazem nesse caso?
− A equipe vai aí simplesmente religar o sistema, costuma dar certo. Não é difícil. Você ou outra pessoa pode fazer isso.
− Pode me dizer os procedimentos?
− Posso. É bom anotar.
− Pode falar.
Sob a luz quase se extinguindo de uma velha lanterna, comecei a anotar os passos que deveria dar. Mais ou menos como segue.
Segundo meu interlocutor, eu deveria ir até a “subestação” que ficava no subsolo, na parte central do prédio. Lá, eu ia encontrar um grande painel preto (o quadro de luz), repleto de mostradores. Na parte inferior ficava o “interruptor”. Era uma espécie de alavanca com cerca de 40cm de comprimento, semelhante a um cabo de vassoura. Ela deveria estar abaixada, indicando que o sistema estava desligado. Ela (a alavanca) deveria ser movida para cima. Feito isso, o sistema estaria religado. Bastava torcer para não cair de novo.
Como não havia eletricista na escala de serviço, eu mesmo desci ao subsolo como indicado. Era um espaço aonde jamais havia ido. Lá chegando, dei de frente com o painel gigante, todo preto, “relógios” espalhados por toda a sua superfície. A tal alavanca estava lá, abaixada, como informado. Tentei movê-la com uma das mãos – sem sucesso. Pus a lanterna de lado, agarrei-a com as duas mãos e tentei movê-la para cima. Deu certo. Mas ouve uma disparada de centelhas que me deu a impressão de que tudo ia explodir. Não explodiu. Ufa! O sistema foi religado e a luz voltou firme.
            Voltei ao 4º andar pelas escadarias. Tive receio de subir pelo elevador. Se faltasse energia novamente? Correria o risco de ficar preso. No alojamento, deparei-me com o cabo- auxiliar aparentando nervosismo e se queixando de dor de cabeça. Pediu-me para se recolher mais cedo. Autorizei e acumulei também as suas tarefas.
            Até às 21h30, tudo tranquilo, a segurança externa a cargo dos fuzileiros navais, a energia parecia estável. Estava na hora de reduzir as luzes e recomendar silêncio a todos para não prejudicar aqueles que desejassem dormir. Como o alojamento do pessoal de serviço ficava localizado na parte norte, comecei a reduzir as luzes a partir da parte oposta, onde ficava o salão de recreio. Caminhava pelo corredor, formado pelas divisórias, quando surgiu um civil-voluntário vindo em sentido contrário, desembestado feito uma égua no cio e me atropelou literalmente. A criatura tinha mais ou menos a minha altura, de modo que a sua cabeça se chocou com a minha e quase fomos a nocaute. Assustado e gemendo de dor, disse um monte de desaforo ao “fusca sem freio” e o dispensei de qualquer outra coisa.
            Lá por volta das 22 horas, estava voltando do banheiro quando me encontrei com pessoas que regressavam do passeio pela cidade. Um fuzileiro me perguntou:
− Chefe, o senhor é o contramestre hoje?
− Sou. Por quê?
− O marinheiro X saiu de licença hoje. É possível que ele regresse de “cara cheia”. Se isso acontecer, quando ele regressar, se regressar, vai fazer muito barulho. É melhor o senhor ficar prevenido. Ele gosta de provocar o pessoal de serviço.
O marinheiro X era um elemento que estava sob os cuidados da psiquiatria. Já havia criado alguns problemas, mas a administração teimava em deixá-lo à vontade. Afirmavam que ele era “doido de marinha”, não apresentava perigo para as demais pessoas. Isso não deixava de ser verdade, mas desde que ele se mantivesse distante do álcool.
− Hoje, definitivamente, não é o meu dia (comentei sussurrando).
− Como assim?
− Nada. Deixa pra lá.
Se o leitor acha que fiquei preocupado, acertou. Com alguém de pileque até é possível algum entendimento. Mas com doido e de pileque, é bom não facilitar.
Eu podia admitir tudo, até xingamento, menos ameaça física. Portanto, tomei algumas medidas práticas e críticas. Esperei pra ver.
Aqui na zona rural do Nordeste, no meu Rio Grande do Norte, eu diria que os galos estavam começando a cantar, quando a criatura adentrou o “espaço comunitário”. Em altos berros, xingando todo mundo.
Praticamente, eu não tinha dormido, logo estava ouvindo aquela suave narração desde o começo. A certa altura, alguém parece ter feito referência ao contramestre. Isso porque repentinamente suas mensagens foram sistematicamente dirigidas a esse personagem que, naturalmente, era eu, o próprio. Ouviam-se textos de caráter agressivo, somente admissíveis a pessoas fora de seu estado de lucidez.
Nada a fazer. Sentei-me na cama de frente para o espaço que dava acesso ao alojamento, destravei a 45 e falei para alguns que estavam acordados no mesmo recinto: se ele tentar ultrapassar aquele limite, estou ferrado, mas ele será um doido morto.
Graças a Deus, a voz dele foi ficando cada vez mais fraca até silenciar. Dormiu e, depois do “toque de alvorada”, continuou “apagado”.
Bem antes das 5h30 (hora prevista para o toque de alvorada), já havia me levantado, ido ao banheiro fazer as necessidades fisiológicas e de asseio. Estava pronto para iniciar outro dia de trabalho.  Nesse meio tempo, passei pelo local onde o cabo-auxiliar estava alojado. Ao contrário de mim, ele parecia ainda dormir. Chamei-o para lembrá-lo do horário, pois ele deveria executar o toque de alvorada exatamente às 5h30. Abriu os olhos e disse-me:
− Chefe, se eu assoprar o maldito desse apito agora, vou explodir. Minha cabeça dói, meus olhos doem, minha garganta está arranhando, meu nariz está entupido...
Então, lembrei-me que ele pedira para se recolher mais cedo.
− Tá. Não se incomode. Eu toco a alvorada.
− O senhor sabe tocar o apito?
− Não. Tenho outros meios, que usados com “inteligência”, fazem o mesmo efeito.
− Obrigado, chefe. Fico devendo essa.
− É. Quem sabe... Nada melhor do que um dia após o outro. Ah! Me empresta o seu cassetete.
− O que o senhor pretende fazer com ele?
− Não se preocupe. Não vou bater em ninguém, não. Se for isso que você está pensando (risos).
Exatamente no horário marcado, comecei a caminhada de alojamento a alojamento. Na entrada, dava umas pancadinhas com o cassetete num dos armários e complementava: gente, hoje vocês estão privados da doce melodia do cabo-auxiliar; está na hora de levantar, quem se atrasar, vai perder o cafezinho. Saí repetindo esse ritual sem receber qualquer retro informação. 
Quando cheguei ao alojamento reservado ao pessoal do GMM, foi diferente. Após repetir o ritual, ouvi uma voz vinda de algum beliche:
−Chefe, este alojamento é do pessoal do Gabinete...
− Sei. O que é que tem?
− Aqui temos o nosso horário. Não obedecemos ao toque de alvorado do CNB.
Caramba! São duas Marinhas. Pensei...
− Isso que você acaba de falar está escrito em algum documento?
− Não sei. Mas o senhor é o primeiro que está adotando essa atitude.
− Que atitude?
− Essa de aplicar a mesma rotina do Comando (CNB) ao Gabinete (GMM).
− Estou fazendo a minha parte, que, aliás, seria do cabo-auxiliar. De qualquer forma, isso vai constar do meu relatório.
Mal havia me afastado do recinto, ouvi uma voz: “esse sargento está precisando de uma boa comissão” (risos). Essa era uma expressão que, no jargão militar, significava ameaça de o indivíduo ser transferido para determinada comissão para a qual quase ninguém gostaria de ir.
Decidi retornar ao alojamento e perguntar de quem tinha sido aquela sugestão. Silêncio total. Perguntei mais uma vez e o silêncio veio como resposta. Aproveitei aquele momento de “covardia” ou “precaução” e disse: eu só queria informar ao autor da mensagem que pra mim qualquer comissão serve, basta que tenha uma bandeira nacional e uma folha de pagamento, mas nunca, em tempo algum, vou me agarrar ao saco de quem quer que seja para supor ter algum poder maquiavélico.
Ao me retirar, ouvi alguém me chamar. Era um funcionário civil que também estava “hospedado” ali no pedaço.
− Moreira, fui ao banheiro e um sujeito jogou um balde d’água literalmente nas minhas pernas. Molhou meus sapatos e as pernas de minhas calças (mostrou o estado em que ficaram). Quando reclamei, respondeu que eu tinha que esperar ele lavar o banheiro primeiro para que eu pudesse usá-lo. Que absurdo!...
Nessa hora, eu não tinha mais reservas de lucidez para responder ao funcionário numa linguagem adulta. Por muito controle, não disse um palavrão. Apenas falei:
− Amigo você está certo. Mas o sujeito lá está certo também. Acredito que o ato não foi de propósito...
Nisso o funcionário me interrompeu:
− Isso é inacreditável. Como é que sou obrigado a me levantar numa determinada hora e, nessa mesma hora, não posso usar o banheiro porque tem alguém fazendo faxina lá!?
− É como eu lhe disse, ambos têm razão. O que deve estar errado é a norma. Me desculpe. Mas nesse caso, não posso fazer nada. Sugiro que comunique isso formalmente ao seu chefe. Quem sabe, não se faz uma revisão da norma.
Não ficou muito satisfeito com o resultado da conversa. Nem eu também.
Após isso, avisei aos deuses que a minha capacidade de competência para resolver pepinos havia se esgotado.
Voltei ao alojamento onde o cabo-auxiliar tinha ficado cheio de dores. Aí, estava ele sentado, parecia pouco disposto a se levantar, mas iniciamos um curto diálogo.
− Como é, tá melhor?
− Nada. Acho que estou com febre também.
− Dá pra você me responder algumas perguntas?
− Sobre o quê?
− Fale-me alguma coisa sobre a rotina aqui no alojamento: uso dos banheiros na mesma hora em que estão fazendo a limpeza, desobediência do pessoal do GMM quanto ao toque de alvorada...
− Chefe, isso é uma caveira de burro. Eu mesmo já comuniquei, em outras oportunidades, ao contramestre que comunicou ao oficial de serviço, mas tudo continua como sempre. O senhor teve problema com o alojamento GMM?
− Deixa para lá. Veja se arranja um comprimido para tomar.  Daqui a pouco é hora da bandeira. Você vai ter de soprar esse apito.
− Pode deixar. Vou dar um jeito.
Depois desse papo, fui levado a refletir por uns instantes. Cheguei à conclusão de que aquilo era uma bomba prestes a explodir, para tanto bastava uma ação desavisada. A ação poderia ser de qualquer um. Comigo não seria uma exceção. O cenário parecia ideal, senão vejamos: além das minhas atribuições, executei outras, tanto do oficial de serviço, como do cabo-auxiliar. Era um forte candidato alvo.
Alguma coisa tinha que ser feita. Lembrei-me do velho C-9 (livro de quarto dos sinaleiros dos navios e de postos de sinais) onde todas as ocorrências eram registradas, muitas vezes, para posterior análise. Não era esse o caso. Alguma coisa me dizia que o fato deveria chegar às mãos de alguém para ser divulgado por ocasião da formatura de parada a ser realizada aí por volta das 9h30. Não podia contar com o oficial de serviço pois ele não estaria presente. O tempo voava.
Decidi redigir um texto informal, encimado pelo seguinte assunto: “Irregularidades observadas no turno de serviço”.
Fiz um resumo das mais “cabeludas”. Dei ênfase ao observado no alojamento do GMM. Depois, entreguei ao oficial encarregado de Pessoal e pedi que, se possível, o divulgasse por ocasião da formatura de parada (essa formatura era composta por todos os oficiais chefes de unidades e por praças representando o superior quando este não pudesse estar presente). Nessa oportunidade, o comandante do órgão ou seu preposto transmitia as notícias relevantes do dia (ordens, recomendações, avisos entre outros).
Na hora de costume, o pessoal formado inclusive eu, não poderia perder aquele evento. Chega o chefe do Estado-Maior do CNB, que após os procedimentos de praxe, deu início à sua fala com a seguinte frase:
− O encarregado de Pessoal deve colar o sargento contramestre no livro de castigo (pausa), imagine que passei há pouco pelo alojamento do Gabinete no quarto andar e observei que ainda havia gente dormindo lá. Ele deixou de cumprir com suas obrigações...
Nesse instante, foi interrompido formalmente pelo encarregado de Pessoal:
− Comandante, receio que isso não vá ser necessário porque estou de posse de um relatório feito pelo contramestre.
− O que diz o relatório?
− Entre outros assuntos, relata que o pessoal do alojamento do Gabinete alega não estar obrigado a seguir a rotina do Comando...
O comandante ficou calado por uns instantes.
− Nesse caso, retiro o que disse. Mas você (dirigindo-se ao encarregado de Pessoal) se entenda com o encarregado de Pessoal do Gabinete. Se for necessário, faremos um comunicado formal. De preferência ainda hoje. Essa situação não pode continuar.
Seguem-se então as demais informações programadas.
Quando ouvi o comandante ordenar para que o contramestre fosse colocado no “Livro de Castigo” – Livro Registro das Contravenções Disciplinares −,meu cérebro, como um todo, estremeceu. Imaginei que as ameaças feitas, tinham caminhado muito rápido; vejo-me embarcando num caminhão “pau-de-arara” para servir no Estado do Mato Grosso. Bendita pausa. Depois dela, veio o relaxamento. O cérebro direito e o esquerdo se cumprimentaram. Ambos haviam contribuído para que eu tivesse adotado a ação requerida – comunicar formal e imediatamente a pessoa certa as irregularidades observadas.
Como visto, nem tudo deu errado. Porém, é bom não se esquecer do conselho do Criador: “Se queres que eu te ajude, faze a tua parte que eu farei a minha”.


(*) Veterano, escritor, publicou Memórias de uma Tríplice Jornada.

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