quinta-feira, 13 de outubro de 2016

COMEÇARIA TUDO OUTRA VEZ

COMEÇARIA TUDO OUTRA VEZ
Gil Cordeiro Dias Ferreira*
Começaria tudo outra vez
Se preciso fosse, meu amor
A chama em meu peito
Ainda queima, saiba
Nada foi em vão
(Gonzaguinha)

A um não-marinheiro:
Podes entender quão estafante foi aquele quarto ano ginasial - estudo à tarde -cursinho à noite; mas quão desesperante foi a espera diária do “Correio da Manhã”, e quão extasiante foi lermos ali nossos nomes como aprovados no concurso ao Colégio Naval... não!
Podes aquilatar quão decepcionante foi a reprovação de alguns num ou noutro quesito do indescritível exame de saúde; mas quão aliviante foi termos nossos recursos aceitos... não!
Podes imaginar quão impactantes foram as visões, pelas vezes primeiras, da Baía da Ilha Grande, à saída de um túnel de pedra, no alto da Serra do Mar, para os que vinham por terra; ou a do então cinquentenário edifício amarelo-ocre, imponente com seu torreão do relógio, emoldurado ao fundo pela Mata Atlântica e à frente pela Enseada Batista das Neves, para os que chegavam por mar; mas quão esfuziante foi decidirmos que ali construiríamos nossos destinos... não!
Podes compreender quão chocante foi migrarmos, ainda adolescentes, das rotinas suaves dos colégios civis e da vida familiar para a disciplina férrea do internato militar-naval; mas quão edificante foi tal guinada para nossos corpos e mentes... não!
Podes identificar quão angustiante foi começarmos o convívio com Oficiais, Praças e Civis... Superiores, Professores, Instrutores, Monitores...  Com a turma de Veteranos, nem sempre amigáveis, quase sempre orientadores... e a de Calouros – nós - ainda não integrados; mas quão solidificante tal processo seria para os laços que até hoje nos unem... não!
Podes adivinhar quão estimulante foi a iniciação nas coisas do mar, suas teorias e práticas, suas ciências e artes, seus falares, sua História, seus uniformes e tradições, seu modus vivendi, enfim; mas quão inebriante se tornaria incorporar essa cultura para o resto de nossas vidas... não!
Podes avaliar quão entristecente foi deixarmos o Velho Barco, rumo a Villegaignon ou à vida civil; mas quão marcantes, pelos anos que nos restaram, seriam as lembranças dos anos juvenis compartilhados em Angra dos Reis... não!
Podes reconhecer quão eletrizante foi talingarmos à cinta, pela vez primeira, o espadim trazido por suaves mãos femininas, mais de mães do que de namoradas; mas quão arrepiante foi ouvirmos o tilintar do metal dos passadores contra a bainha, ao circularmos pelo Rio, os orgulhosos Aspirantes da Escola Naval, envergando garbosos o jaquetão azul e dourado, as luvas de couro marrom e o boné branco... não!
Podes interpretar quão empolgante foi ostentarmos nos ombros as duas âncoras cruzadas de quartanistas; mas quão entusiasmante foi a aproximação da conclusão do Curso, ainda que preocupante, pela perspectiva do que o alvorecer do Oficialato nos traria... não!
 Podes enxergar quão tocante foi deixarmos os espadins ao pé do mastro da Fragata Amazonas, heroína de Riachuelo; mas quão emocionante foi termos, logo depois, trocadas as âncoras cruzadas pela fina listra dourada de Guardas-Marinha, novamente por perfumadas mãos femininas, agora mais de namoradas do que de mães... e em seguida recebermos das mãos de Almirantes as espadas que hoje doamos aos que vêm nos sucedendo na Ilha... não!
Podes contabilizar, uma a uma, quão motivantes foram as comissões exercidas, a bordo e em terra, por trinta ou mais anos, de Tenentes a Comandantes – e a Almirantes para alguns; mas quão ora comoventes, ora hilariantes, mas sempre profissionalizantes foram os milhões de momentos vividos nos conveses e cobertas, nos passadiços e nas máquinas, nos campos, nos ares, sob a água, nas Praças-d’Armas, nas fainas e formaturas... não!
Podes meditar sobre quão angustiante foi o rito de passagem do Serviço Ativo à Reserva-Reforma; mas quão enternecente tem sido reviver o Espírito Marinheiro, por vezes pelo singelo trabalho temporário na Velha Casa, em trajes civis... amiúde pela presença em cerimônias, nos quartéis e navios...  diuturnamente, pelas rodas de conversa nos Clubes... e a todo instante, ao revermos nossas trajetórias de vida nos olhos das companheiras de décadas, encanecidas como nós, que nos miram com ternura, lado a lado com os filhos e netos... não!
Podes, por fim, entender quão diversificante e dignificante é ser marinheiro; mas porquê repetiremos por todo o sempre, com Gonzaguinha, que “A chama em nosso peito ainda queima” ... “Nada foi em vão” ... “Começaríamos tudo outra vez” .... não!
Por: CMG (Refº - FN) Gil Cordeiro Dias Ferreira
Diretor do Depto Cultural do Clube Naval
Av. Rio Branco, 180, 5º andar
Centro – Rio de Janeiro / RJ
CEP: 20040-003
Tel: (21) 2112-2418 / 2262-1873

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