Um 'causo' de Marinha muito interessante contado em duas partes pelo Veterano e Escritor Espedito Moreira.
Segue a primeira:
FUZILEIROS E
MARINHEIROS
Convivência doméstica nem sempre
harmoniosa
Por Espedito M. Mello*
As notícias da segunda guerra mundial
levavam para a minha região do sertão potiguar fotos e informações sobre os
embates nos frontes de batalha. Na minha inocência, o que mais chamava a
atenção era a grande quantidade de aviões, em formação, que cruzavam o límpido
céu da região, quase sempre, na direção do aeroporto de Parnamirim. Era comum
às pessoas saírem do interior de suas casas, ou darem pausa no que estavam
fazendo, para observar a passagem daquelas nuvens de belos pássaros de aço
voando em perfeita formação.
Por não saber o que havia no interior
daquelas máquinas, minhas atenções estavam voltadas para os navios de guerra.
Os canhões dos encouraçados “Minas Gerais” e “São Paulo” eram, para mim, um
grande espetáculo. Vez por outra, a marujada aparecia de uniforme de licença.
Adorava o chapéu e a gola, com âncoras desenhadas simetricamente, repousando
sobre as costas do usuário. Daí, a minha decisão precoce: “quero ser
marinheiro”.
Chegada a época oportuna, levantados e
avaliados os pontos fortes e os pontos fracos, analisadas as vantagens e as
desvantagens, tudo resultou no desvio do curso de ação. Fiz opção por ser
fuzileiro naval, decisão que nunca me trouxe qualquer porcentagem de
arrependimento. Não acabou, contudo, minha simpatia pelas coisas do Cisne
Branco.
Quis o destino que eu fosse designado
para realizar o meu primeiro curso de especialização fora das dependências do
Corpo de Fuzileiros Navais – CFN. A conselho de um conterrâneo de comunidade,
após a formação de soldado, eu deveria me candidatar ao primeiro curso de
especialização que surgisse, fosse qual fosse, não deveria perder tempo. Ele
era um exemplo bem sucedido.
Um colega me avisa: “olha, daqui a
pouco, vai haver uma seleção para quem quiser fazer o curso de especialização
de sinais, é uma decisão emergencial, vai enfrentar?” De sinais? O que é
isso? Quis saber. Olhando para a torre
de sinais do quartel, ele aponta: “tá vendo aquele monte de bandeiras içadas,
aqueles holofotes acendendo e apagando?” Tô, respondi. “Então, aquilo é o que o
sinaleiro faz . Eles estão em comunicação com os navais da esquadra. Além do
mais, o curso vai ser realizado em Natal, você não é de lá”? Corri até o local
onde estavam sendo feitas as inscrições, preenchi alguns formulários, fiz a
prova, passei, e, três dias depois,desembarcava a fim de ir para Natal.
A concentração foi no “NE Minais Gerais”
ou no que restava dele. Pouco mais de cinquenta fuzileiros navais para os
cursos de sinais e telegrafia, e cerca de duzentos e cinquenta marinheiros
destinados a outros cursos. Boa parte dos fuzileiros tinha pouco mais de um ano
de serviço, alguns tinham até menos, recém-saídos do curso de formação, e muito
poucos tinham mais de dois anos. Os marinheiros, sem exceção, já haviam
navegado muitas milhas. A partir dessa constatação, as piadinhas de mau gosto
começaram a surgir, espírito de corpo, aliado a pouca empatia, falta de
espírito esportivo e humor azedo. Tudo isso indicava o início de uma longa e
difícil interação.
Dois contratorpedeiros transportaram o
pessoal. Depois de quatro ou cinco dias de mar, chegamos ao destino. Foi uma
viagem “apertada”, mas contando com a simpatia do “captain”, chegamos inteiros.
Fomos apresentados ao Centro de
Instrução Almirante Tamandaré – CIAT, onde os cursos seriam realizados. Após a
recepção, fomos lotados em unidades respectivas (Escola de Sinais para uns,
Escola de Telegrafistas para outros, e assim por diante). O pessoal do curso de
sinais foi dividido em duas turmas, compostas de marinheiros e fuzileiros.
Todavia, nem salas adequadas havia para a realização das atividades escolares.
Um espaço da garagem fora adaptado para esse fim. A justificativa era a forma
como se havia decidido realizar o curso, o primeiro executado pelo
estabelecimento naquela modalidade de especialização.
Depois das primeiras semanas, os
conflitos e as antipatias começaram a florescer. A impressão que se tinha era
que mais de 80% do corpo de alunos e de boa parte da guarnição da unidade não
gostavam de “naval”, como eram apelidados os fuzileiros. A situação ficou mais
azeda quando o comandante do CIAT, aproveitando a formatura de parada,
manifestou opinião “simpática” aos fuzileiros navais. Dizia ele: “... tenho que
ser duro na manutenção da disciplina, em especial para com os navais;se eu
tiver que punir um marinheiro com um dia de impedimento por uma falta cometida,
puno com cinco o fuzileiro que cometer a mesma falta”. Explicava: “o naval é um
elemento disciplinado, tem mais consciência do que faz...”. O que deduzir
disso?
Muitas vezes, éramos obrigados a ouvir,
com certo deboche: “o marujo é muito mais preparado do que o naval. Vocês se
tornam fuzileiros com apenas quatro meses de instrução, ao passo que nós
levamos dois anos de instrução para sermos considerados marinheiros”. Quando
oportuno, a resposta era imediata: “além de cantar o ‘Cisne Branco’ e fazer
faxina, o que mais se aprende nessa escola de vocês, durante todo esse tempo?”
A opinião do comandante e os achincalhes
de parte a parte eram digeridos de forma natural. Esse fenômeno parecia se
originar de dois motivos: primeiro, tínhamos pouco tempo de serviço em relação
aos marujos e já estávamos fazendo curso de especialização; segundo, éramos
fuzileiros navais, isso nos tornava elementos da SP (Companhia de Polícia) e a
SP prendia marinheiro. O desagradável
vinha de alguns oficiais (auxiliares). Conheci dois deles que não tinham só
antipatia por fuzileiro naval, eles cuspiam ódio aos “amarelos”. Quando fingiam
alguma simpatia, estavam à procura de oportunidade para execrar o adversário.
Não havia militares do CFN servindo no
CIAT exceto os alunos. Vez por outra, um sargento da 3ª Companhia Regional de
Fuzileiros Navais fazia uma visita ao estabelecimento. Aproveitando a
oportunidade, a gente trocava algumas ideias. Certa vez, ele nos preveniu: “...
fuzileiro quando serve embarcado, chega ao navio com a Caderneta Histórica
vazia de punição e regressa ao quartel com ela transbordando”.
Tranquilizava-nos, contudo, alegando que ali a situação era diferente,
estávamos cursando algo não comparado às tarefas exercidas quando se está
embarcado.
As aulas começaram, grupos foram se
organizando, os bate-papos constituíam modos de interação, o universo das
comunicações se reduzia. Acabado o horário de aula, tudo voltava ao “normal”.
Os fuzileiros e os marinheiros eram designados para atividades gerais:
segurança nos portões, nos alojamentos e, para mim, o pior deles – servir de
rancheiro por trinta dias.
A cada dia, surgiam desentendimentos,
pequenos e, às vezes, quase grandes conflitos interpessoais. A maioria dos
fuzileiros, verdes ainda na malandragem peculiar aos marujos, chegava a perder
a esportiva. O tempo parecia que ia fechar, mas sem chover de verdade. Isso
parece não ter sido ignorado pela administração superior. Logo, os fuzileiros
foram designados para, somente, fazer a guarda do estabelecimento. Um pequeno
espaço foi reservado para servir de alojamento, unicamente para os fuzileiros.
Ficamos meio que empilhados, mas tínhamos um território só nosso, ficávamos
apenas com os nossos problemas.
Essa medida, se por um lado diminuiu as
“tensões” entre navais e marujos, por outro, fez surgir outra rusga que até
então não havíamos identificado. Mas isso fica para ser narrado noutra
oportunidade. Por enquanto, vou deixá-los a “ver navios.”
*Veterano e escritor.
Calma Veterano, em breve sai a segunda parte, aguarde e mate a curiosidade...
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