domingo, 18 de maio de 2014

Fuzileiros e Marinheiros - Um 'causo' de Marinha - Parte 2

    Segue abaixo a segunda parte de Um 'causo' de Marinha muito interessante contado em duas partes pelo Veterano e Escritor Espedito Moreira, colunista de nosso Blog e do site da AVCFN. A primeira parte foi postada no dia 8 de maio, caso não tenha visto Click  AQUI e VEJA Nesta parte ele conta a razão das desavenças entre marinheiros e soldados do Exercito, que era muito comum naquela época! INTERESSANTE... 



FUZILEIROS E MARINHEIROS

Convivência doméstica nem sempre harmoniosa

Por Espedito M. Mello*

Segunda Parte



A definição de uma atividade específica para os fuzileiros navais pegou-nos de surpresa. A informação que recebemos era lacônica: “a partir de (tal dia) os navais serão escalados somente para guarnecer os postos de segurança do CIAT, haverá um alojamento só para eles e não mais serão escalados para outras tarefas”. Nada mais foi acrescentado.


Eram quatro postos, três fixos e um móvel. O móvel destinava-se a vigiar, pela parte interna,o muro de proteção, paralelo à linha do trem. Diziam que a criação desse posto fora para atender a solicitação do “Tenente SI”, oficial auxiliar, assim apelidado, por ser oriundo do quadro de sinais, tendo por objetivo impedir que elementos saídos do estabelecimento por vias não convencionais (no pulo) e, depois, quisessem regressar da mesma forma que saíram. Era uma tarefa simples e ao mesmo tempo complexa a ser desempenhada. Ia das 22h às 6h do dia seguinte.


A nova situação provocou algumas opiniões contraditórias entre os fuzileiros. Uns entendiam que seria melhor assim; teríamos nosso próprio nicho, embora as instalações não fossem nada confortáveis; iríamos cuidar, somente, dos nossos problemas. A outra parte entendia que a “separação” iria acirrar mais ainda as desavenças, dificultando o processo de interação interpessoal; ficaríamos mais expostos às ações de determinados oficiais (auxiliares) que não simpatizavam com os navais. E entre eles, estavam os mais ostensivos: o “tenente SI” e o “tenente MR”, como eram identificados.


Era consenso. Nossas tarefas não teriam o desempenho facilitado. Centenas de olhos nos observariam, não para ver se estávamos fazendo a coisa certa, porém, para identificar os nossos possíveis desvios de procedimento.


Então, o que fazer? Quais eram os nossos pontos fortes? Além do conhecimento da parte executiva das tarefas, tínhamos como retaguarda confiável o encarregado das escolas de sinais e telegrafia, o então, Capitão-Tenente Carlos TIMPONE (identifico-o pelas suas qualidades de verdadeiro líder), os sargentos subinstrutores, aos quais cabia a tarefa de fiscalização e de coordenação dos postos, sua eficiência no desempenho das tarefas era exemplar; isenta de qualquer rancor. Inesperadamente, surgira um novo elo que poderíamos contar para reforçar o esquema: o então, Capitão-Tenente (IM) Estanislau FAÇANHA, segundo ele, forte admirador do Corpo de Fuzileiros Navais. Nós o apelidamos de “FN cinza”. Vai merecer um parágrafo à parte.


E os pontos fracos? Uma pequena parcela de marujos já identificada; o motivo era sempre o mesmo: “naval persegue e prende marujo” (eu e mais dois colegas, oriundos da Companhia Presidiária, identificamos mais de um deles que haviam se “hospedado” em nosso “hotel”). Bom, que eles não nos reconheceram. Fora isso, havia o espírito corporativista. Somava-se ainda a atitude já manifesta do Comandante; ele alegara que seria rigoroso na disciplina com os navais. Por fim, com relação aos dois tenentes SI e MR citados, era opinião geral: “os inimigos estariam à espreita sempre.”


Assim, foi sugerida a formação de grupos informais cujas atividades básicas seriam: segurança interpessoal, pertencer à mesma divisão de serviço e, por fim, praticar atitudes saudáveis de inter-relacionamento com a marujada. Afinal de contas, depois do curso, seríamos profissionais para o desempenho da mesma atividade, servindo ao mesmo patrão. Não iríamos passar o resto vida arengando.


Nosso grupo, na prática, já estava constituído. Éramos três, oriundos da Cia. Presidiária, entre os quais um ex-seminarista, de linguajar adequado à gramática, logo escalado para ser o relações públicas, um praticante de artes marciais e eu que não entendia por que os marujos “odiavam” tanto os navais. A explicação de que navais prendiam marujos não se sustentava porque navais também prendiam navais. Já haviam nos apelidado de “os três mosqueteiros”. Como na história, os três mosqueteiros eram quatro, resolvemos fortalecer o grupo, convidamos um “armário” para defesa física do “colegiado” e um “velha-guarda”, portador de experiências profissionais adquiridas. Posteriormente, negociamos para pertencermos à mesma divisão de serviço. Isso feito, estávamos pronto para remover quaisquer obstáculos que se interpusessem em nosso caminho. Era o que pretendíamos.


Nessa altura do causo, o leitor deve estar se perguntando por que estou dando tanta ênfase às picuinhas entre fuzileiros e marinheiros. Afinal de contas, elas sempre existiram e jamais acabarão. É verdade. E é até bom que existam. Quando saudáveis, são motivacionais.


Para entender o caso, não o causo, vamos no situar no tempo e no espaço. Estávamos na capital potiguar no início dos anos 1950. Muitos daqueles marujos, que ali estavam, tinham convivido com os marujos da Marinha americana, em virtude das constantes viagens realizadas aos Estados Unidos, para treinamento e recebimento de navios (os cruzadores Barroso e Tamandaré são exemplos), e eram entusiastas do comportamento apresentado pelos marujos ianques. Confundiam alhos com bugalhos. Os marujos americanos se divertiam, relaxavam pra valer quando estavam de licença. Quando estavam de serviço, ao contrário, a atitude era bem diferente. Boa parte dos nossos colegas marujos queria relaxar em qualquer situação.


O ambiente social da marujada em Natal estava um tanto confuso. Além das divergências com os fuzileiros, passaram a ter mais um complicador – os soldados do Exército. O motivo teria sido provocado por elementos embarcados no navio-escola Guanabara que, ao atracar no cais do porto da cidade, seus componentes teriam saído às ruas provocando e agredindo todo soldado do Exército que encontravam. A reação foi imediata. Os “verdes” se organizaram e partiram para o contra-ataque. Onde tinha marujo e soldado do Exército tinha encrenca. O navio deixou a cidade levando seus brigões, mas deixou a fama. Quem passou a pagar o pato, foram os marujos que aí serviam. Em marujo fardado (naquela época, militar até a graduação de sargento, era obrigado a andar fardado), os “verdes” baixavam a bordoada.


E o que é que tinha haver os navais com isso? Simplesmente, os navais tinham “passe livre” nas organizações “verdes”. Estes consideravam os navais amigos, proibido a eles, só ou em grupo, qualquer forma de ameaça. O leitor pode acreditar, a situação só veio a melhorar depois que o nosso “relações públicas” entrou em cena.


A execução de nossas tarefas caminhava satisfatoriamente. A guarda do portão principal, assim como o controle do posto do portão que dá acesso à Base Naval, e o do cais, eram pacíficos. A sentinela móvel havia encontrado uma maneira de resolver a pendenga sem precisar atirar em ninguém. Mas, como diz o ditado “não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe”, surge a dupla MR e SI. O que era calmaria virou incerteza.


No dia em que o SI assumiu as atribuições de oficial de serviço, a pendenga começou de verdade. Contaram que ele, antes de as sentinelas assumirem seus respectivos postos, passou a fazer recomendações, era um rosário de detalhes específicos para os postos fixos até chegar ao móvel. Aí, ele teria se detido mais no detalhamento. Esse posto parecia ser a menina de seus olhos; assim, teria recomendado à sentinela nesses termos:


− Não quero ninguém pulando o muro.

O naval pedira esclarecimento:

− De dentro pra fora ou de fora pra dentro, tenente?

O tenente ficara vermelho e um tanto contrariado:

− De fora pra dentro, seu engraçadinho.

− Certo. Mas o senhor sabe que quem pula o muro são os marujos que foram para terra no “pulo”.

− Sei. Você vai estar lá exatamente para isso: impedir que eles entrem.

− Mas mesmo que eu diga a eles para não pularem o muro e eles insistirem?

O tenente querendo aparentar-se senhor da situação, teria respondido:

− Você está armado. Não é pra isso que a arma serve?

− O senhor está dizendo que eu posso atirar no sujeito se ele não me obedecer?

O tenente já meio confuso:

− Eu não disse que você podia atirar, eu disse que você dispunha de uma arma...

O colega entendeu que o tenente estava querendo enrolar, então teria dito taxativamente:

− Tenente, se algum militar, marujo ou naval, tentar pular o muro, eu vou dizer que ele está proibido de fazer isso, se ele insistir e pular, não posso fazer nada. A arma, nesse caso, não serve para nada. A não ser que o senhor me dê uma ordem por escrito...

O tenente, já muito irritado:

− Não vou assinar ordem nenhuma. Vá assumir o seu posto, amanhã se resolve isso.


O colega teria assumido o posto e procedido como antes: os irregulares poderiam se safar desde que fosse longe dos olhos dele, isto é, depois do canal, lá pra perto do curtume, onde o local era meio deserto e não tinha vigilância. O que houve depois não foi do nosso conhecimento, apenas que o posto (de observação) foi extinto dias depois.


Nossa divisão ia estar de serviço no domingo seguinte. Isso significava que as nossas tarefas começariam mais cedo – das 8h da manhã às 8h da manhã seguinte.


Aos domingos era permitida a visitação pública às dependências do CIAT, na parte da tarde. Não havia nada de especial para ser visitado, mas o pessoal, ali das imediações, adorava fazer esse tipo programa. O acesso era liberado sem qualquer tipo de identificação. A via principal, ficava totalmente ocupada pelos visitantes. Era uma procissão de mão dupla, que tinha início no portão de entrada e terminava no prédio da garagem. Não era permitido o acesso às demais vias do Centro


Tudo seria apenas mais um domingo como haviam sido os outros anteriores. No entanto, esse foi diferente. Nesse, as atribuições de oficial de serviço couberam ao “Tenente MR”. Ele era a autoridade máxima “no pedaço”. Parecia que ele achava ter poderes ilimitados: casar/descasar, prender/libertar entre outros.


Por volta das 15h, a via estava lotada. Pessoas iam e voltavam. Parecia uma praça pública onde as pessoas ficam circulando e deixando o tempo passar. Foi nesse ambiente que surgiu um episódio que mudou aquela tarde tranquila.


Um naval, que estava de licença, levou um amigo para visitar o CIAT. De onde estávamos, vimos o exato momento em que eles passaram pelo portão de acesso. A gente costumava chama-lo de mascote da turma. Era o mais jovem. Magrinho, branquinho e, naquele dia, quase não diferençava do uniforme branco, impecavelmente engomado. Muito tímido, era uma luta para obter uma manifestação espontânea dele. Ao lado do amigo, saldou a sentinela com a regulamentar continência e adentrou as dependências do estabelecimento como qualquer visitante. Caminhava tranquilamente no prolongamento da via, parando onde nós estávamos, em frente à sala de estádo, junto ao mastro da bandeira, para nos apresentar o amigo. Depois, seguiu adiante. Repentinamente, o oficial de serviço falou em voz alta: “chamem esse naval aí”, apontando para a nosso mascote, que nem precisou ser avisado, ele ouvira o oficial e, prontamente, dirigiu-se à presença do superior para saber de que se tratava. Coitado. Nem imaginava o que iria rolar.


Ao se aproximar do superior, nem teve tempo de fazer a apresentação de praxe, foi saudado com a seguinte expressão:

− Você é militar ou é um paisano fardado?

Nosso mascote não tinha entendido nada. Deu uma ligeira olhada no aspecto pessoal e respondeu:

− Senhor, não estou entendendo.

− Isso prova que você não é um militar disciplinado, procede como um boneco.

A essa altura o nosso mascote já não estava mais branco, suas feições ficaram vermelhas repentinamente. Como o tenente falava alto, quase gritando, as pessoas que passavam por ali começaram a parar para ver aquela cena. Nós (eu, meu colega “relações públicas” e o veterano) nos aproximamos também. Não iríamos perder aquele espetáculo. Assim que o nosso mascote nos viu, criou coragem:

− Tenente, o senhor quer ir direto ao ponto, se sou boneco como o senhor diz, sou meio lento também, mas não sou surdo. Preciso que o senhor seja mais claro, não sou adivinho.

Ouvindo isso, o oficial ficou roxo de raiva e não perdeu tempo:

− Tá vendo, isso prova de que estou certo. Você, além de tudo, é um indisciplinado. Isso prova a má formação que recebeu. Então, você não sabe que toda pessoa estranha que entra numa unidade acompanhada de militar deve ser levada à presença do oficial de serviço? Não lhe ensinaram isso?

− Isso eu sei. Acontece que esse não é o caso. Todo esse pessoal que está indo e vindo foi trazido à sua presença?

− Não ”seu” idiota, eles não estão acompanhados por militares (risos).

Depois disso, o meu colega “relações públicas” não se conteve. Falou pra nós, este f.d.p. não vai mais humilhar o nosso mascote. Aproximou-se mais da cena, pediu licença ao tenente, e mesmo sem que este falasse qualquer coisa, disse:

− Tenente, o senhor está ultrapassando os limites de sua autoridade.

O tenente surpreso:

− O que é que você entende de limite de autoridade?

− Mais do que o senhor pode pensar.

− Pois saiba que aqui hoje eu sou até presidente da República, posso fazer o que eu quiser.

− Pode, mas não pode tudo. Até para o presidente da República há limites.

Nessas alturas, a plateia estava mais significativa. O tenente espumando de raiva:

− Vocês navais não prestam pra nada! Só servem para prender marinheiro.

O mascote compreendeu que havia ganhado a batalha. Aproveitou a deixa:

− Está explicada, toda essa sua raiva.

− Vou coloca-lo no “Livro de Castigo” pra você se explicar com o Comandante.

− Não tem problema – disse o mascote.

Nosso “relações públicas” interveio:

− Tenente, se puser ele no livro de castigo, me bota também...

Eu e o outro colega que até então éramos apenas espectadores, resolvemos nos manifestar:

− Acrescenta-nos também, tenente, Vamos dar trabalho ao Comandante.

− Saiam todos daqui antes que mande prendê-los, seus indisciplinados!

Ouviu-se um sonoro “sim senhor”.


A notícia desses dois episódios se espalhou pelas dependências do Centro. Além da extinção do posto móvel, não ficamos sabendo, oficial ou oficiosamente, o que foi discutido no âmbito da administração. Mas, nos dias seguintes, as atitudes da marujada mudaram da água salobra para o champanhe em relação aos navais.


Outro fato que contribuiu para a mansidão dos espíritos foi uma conversa que tivemos, eu e o “relações públicas”, com o comandante de uma escolta do Exército.

Um de meus irmãos havia terminado o serviço militar. Contou-me que tinha sido motorista da viatura, que transportava o pessoal de escolta, por algum tempo, de modo que muitos daqueles cabos que comandavam a escolta o conheciam, portanto, eles poderiam ser o elo de interação para uma conversa esclarecedora que pudesse pôr um ponto final aos constantes conflitos “belicosos” entre as partes.


A oportunidade surgiu quando estávamos numa “festa de barracas” em uma das ruas do bairro do Alecrim. Era ponto de convergência de muita gente, inclusive marinheiros, soldados da Aeronáutica e do Exército. Logo, era comum a visita de escoltas dessas corporações ao local.


Quando a do Exército estava parada, observando o movimento, fomos até ela. Cumprimentamos o seu comandante, que nos recebeu amavelmente, e puxamos conversa. Perguntei se conheciam o Mello. Expliquei: ele é meu irmão e foi motorista da viatura da escolta por algum tempo. Foi lembrado por quase todos. Caramba! Mello, gente boa. Daí o papo foi se desenvolvendo. Ficamos cercados pelos membros da escolta.Vez por outra, alguns fuzileiros passavam por perto e perguntavam: “tudo bem aí”? O próprio comandante da escolta respondia: “tudo bem, aqui todo mundo é de paz.”


Contamos em detalhes o que achávamos que seriam as causas dos conflitos entre marujos e soldados. Afirmamos que os marujos que estavam em Natal não tinham interesse nesses desentendimentos. A culpa seria, certamente, do pessoal dos navios que passavam pela cidade. Por fim, ele se comprometeu a levar o caso a seus superiores e aos líderes das turmas briguentas. E que nós tomássemos as mesmas medidas. Tudo acertado. Voltamos às barracas.


No dia seguinte, conversamos com alguns marinheiros de influência em suas escolas, pusemo-los a par da conversa que tivéramos. Agora, caberia a eles encontrar uma maneira de prevenir os integrantes dos navios que chegassem a Natal, em relação à sua conduta, de forma a responsabilizá-los por qualquer desvio de comportamento esperado. Fizemos o nosso trabalho. Até achamos que foi positivo porque não ouvimos mais falar em “guerra generalizada.”


A vida continuou. Caminhávamos para a metade do curso. Fiz um esforço danado até conseguir ir para o “Quadro de Honra”, por atingir um determinado número de pontos numa escala planejada. Com isso, estava livre dos “plantões” aos sábados, domingos e feriados. Assim, fui até o final do curso. Fiquei em quarto lugar entre os fuzileiros. Os três da minha frente já eram semiprofissionais na especialização. O primeiro foi o quinto, no geral.


As relações interpessoais no final do curso estavam bastante diferentes das do início. Algumas amizades feitas foram duradouras. A nota triste ocorreu com a reprovação do nosso “relações públicas”. Ele estava apaixonado pela namorada. Relaxou. O CFN cancelou a etapa do curso seguinte e ordenou o regresso dos reprovados ao Rio. No Recife, ele desertou. Não foi uma decisão acertada.

Um comentário:

Júlio Mafrra disse...

Júlio Maffra em 19/05/2014
Parabéns ao Veterano Espedito pelo belíssimo conto retratando as diferenças entre os Fuzileiros e Marinheiros... quando li o "causo" me lembrei quando chegamos à cidade de Rio Grande... muita semelhança em várias situações... nós, os Fuzileiros conseguimos ganhar antipatia dos Marinheiros, do pessoal do EB e também, de lambuja, do pessoal da Brigada Militar... só conseguimos nos dar bem foi com as mulheres... hehehehee... talvez este tenha sido um grande motivo dessas antipatias. Parabéns, excelente conto... Grande abraço. Maffra