Mais um artigo do nosso colunista Espedito Moreira Veterano e escritor lá do RN
A FILA E O GALO
Espedito Moreira*
Num fim de semana recente, minha mulher
e eu fomos convidados pela direção de uma associação de idosos para um passeio.
O destino seria uma chácara de propriedade de um dos membros dessa associação,
distante cerca de 90km do centro de Natal. Haveria um ônibus para aqueles que
não quisessem ir de automóvel ou não conhecessem o caminho até o destino
traçado. Optamos pelo ônibus. A viagem foi muito agradável e durou cerca de
duas horas.
A sede da chácara é uma construção de bom
gosto. São várias dependências: salões, quartos, cozinha, banheiros. Quase toda
circundada por alpendres bem ventilados, equipados com estruturas para armação
de redes postas à disposição dos convidados. Ótima piscina, pequena academia de
ginástica e uma churrasqueira. Vários outros equipamentos completavam o espaço
de lazer. Um pomar, com várias árvores, algumas frutíferas, dava um aspecto
agradável ao lugar.
Quando os convidados chegaram, foram
recebidos com muita simpatia pela anfitriã. Muito simpática, a criatura fez
questão de ela mesma servir bandejas e mais bandejas de salgadinhos
acompanhados de sucos e refrigerantes.
Ao mesmo tempo, sugeria que todos ficassem à vontade e procurassem
desfrutar o máximo das facilidades disponíveis.
O dia estava lindo, não chovia e o sol
colaborava. Logo, o grupo se dispersou formando grupos menores para a prática
de atividades de seu interesse.
Pouco depois, foi anunciado o programa
da estada que se resumiu em grupos de representação, dança e a escolha, entre candidatas
voluntárias, daquela que seria eleita a “Rainha da Melhor
Vida” para representar a associação nos dois anos seguintes. E, por último, foi
avisado que o almoço seria servido aí por volta das 14 horas.
Tiveram início as apresentações. A
participação era voluntária. Além de algumas danças, a gente somente observava
as demais atividades, até que fomos convidados para participarde uma
brincadeira que consistia em sortear um pedaço de papel no qual estava escrito
a tarefa que o sorteado teria de cumprir. Coube a mim a seguinte: “cite
duas coisas de que você não gosta - explique”.
Moleza, pensei: política partidária,
corrupção, impunidade, insegurança pública, desassistência médica, atendimento
hospitalar, entre outros.
Enquanto os outros iam fazendo as suas
apresentações, aguardava a minha vez e, ao mesmo tempo, procurava fazer a minha
escolha definitiva. De repente, pintou a dúvida: não conheço a maioria dessas
pessoas, vai que algumas delas se encaixem num desses assuntos... Ouço o meu
nome acompanhado do aviso de que chegara a minha vez.
Segui na direção do local onde faria a
minha apresentação. Estava indeciso. Lembrei-me, contudo, de duas coisas das
quais também não gosto: de fila e de canto de galo. Cá com meus pensamentos,
ficou a decisão, é sobre isso que devo me manifestar. Quando perguntado qual
era a minha tarefa, respondi: “cite duas coisas de que você não gosta...”.
“E de que ou de quem você vai falar?” “De fila e de canto de galo”,
respondi. “Fique à vontade, disse o mestre de cerimônia”.
Comecei. “Não gosto de fila porque ela
já me fez desperdiçar muito tempo de minha vida que poderia ter sido empregado
para realizar atividades importantes. Se chegada a minha ‘hora’, Deus permitir
que viva com saúde e paz o correspondente ao tempo em que fiquei nas diversas
filas da vida, viveria ainda muitos anos. Dizem que a fila é um mal necessário,
que faz parte do sistema organizacional. Eu até concordo, mas só em parte. Com
certeza, na frente de uma fila, não na retaguarda, está a razão da existência
dela – a falta de organização”. Fiz uma pequena pausa e continuei. “As filas
mais irritantes são as de espera por transporte, por consulta médica, por
atendimento bancário. Tentam-se solucionar o problema, mas, quando muito, o
máximo que se consegue é trocar a posição do cliente: em vez de permanecer em
pé, dão-lhe uma cadeira pouco desconfortável para sentar-se. O sistema de
transporte, seja que modalidade for, tem o processo de espera mais
desconfortável de todos. Agências bancárias tentam resolver parte do problema
acrescentando terminais (caixas eletrônicos) para atendimento aos clientes.
Todavia, o atendimento personalizado ainda é muito desgastante. O pior deles,
na minha opinião, é o sistema de atendimento na assistência à saúde. Quando
alguém liga para a recepcionista ou vai até a sua presença marcar uma consulta
e ouve dela que o atendimento será a partir de tal hora e, que por sua vez, o
encaminhamento ao médico é por ordem de chegada, pode escrever: vai levar chá
de cadeira. É muito fácil deduzir: não vai ser por hora marcada porque o
médico sempre chegará atrasado”. Para
encerrar: “Na falta de outra solução, procuro me adaptar às filas, mas prefiro
as dinâmicas às estáticas.”
Ouvem-se alguns aplausos. Agradeço e
quando ia dando por encerrada a minha apresentação, alguém da plateia falou: “E
o galo?” “Ah! Desculpem-me. Querem ouvir a história do galo?” “Por favor,
continue”, disse o mestre de cerimônia.
A memória recorreu aos meus anos de
pré-adolescência quando começara, então, a minha insatisfação com o canto do
galo. Então, disse o seguinte: “Não tenho nada contra o galo, pelo contrário,
simpatizo bastante com ele quando sai da panela para o prato. Não gosto, porém,
do ‘canto do galo’. Até aos dezoito anos de vida, morei na zona rural. Naqueles
tempos, quase ninguém possuía relógio. Os mais abastados tinham um carrilhão
(relógio de parede, como se chamava). Os demais se valiam da experiência e das
observações para calcular as horas. Por exemplo: quando o sol nascia, eram seis
horas; quando estava a pino, era meio dia; quando desaparecia no horizonte,
eram dezoito horas. Entre outros recursos, havia o ‘canto do galo’. A sinfonia
começava pela madrugada, por volta de três horas e se prolongava até o raiar do
sol. Não se sabia exatamente quem dava o primeiro acorde. Mas, em pouco tempo,
todas as comunidades estavam ligadas pela corrente sonora que se manifestava
através dos mais diversos timbres, vindos da garganta daqueles galináceos.
Chegava a desconfiar que o nosso galo dava início à abertura do recital. Seu
timbre de voz fazia o do tenor Pavarottti parecer uma segunda voz”.
Depois dessa introdução, retomei a minha
narração. “Quando cheguei à pré-adolescência, meus pais me deram algumas
tarefas que se iniciariam exatamente quando os galos começassem a cantar.
Exatamente, na melhor hora do sono, fazendo aquele friozinho gostoso, eu teria
que me despertar e me levantar. Isso acontecia, ao tempo máximo em que a
segunda voz recitava o meu nome: ‘já levantou, fulano’? Se aguardasse a
terceira, o ambiente ficaria pesado. O jeito era partir para a luta, sabendo
que, na vez seguinte, lá estariam os galos, na mesma hora, executando a mesma
melodia e azucrinando a minha vida. Como odeio o ‘canto de galo”! Entre
risos da plateia e aplausos, estava cumprida a minha tarefa.
Depois, na hora do almoço, todos
entraram em fila para serem servidos. Aos comentários recorrentes, eu
respondia: “esta é uma fila dinâmica, entro com muito ‘gosto”. E, para
completar, infelizmente no cardápio não nos foi servido nenhum galináceo
assado.
* Veterano e escritor. Publicou o livro
Memórias de uma Tríplice Jornada
2 comentários:
CONTO INTERESSANTE, PARABENS AO NOBRE ESCRITOR.
Gostei do galo, imagine na panela... Delícia! Parabéns! ao autor.
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