Logo eu que gosto tanto de Cachorro (a foto prova), imagine como fiquei ao ler isto... Confesso que correu lágrimas nos olhos!
Um Cão, Apenas
Cecília Meireles
Um Cão, Apenas
Cecília Meireles
Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do
jardim — plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no
granito —, eis-me no patamar. E a meus pés, no áspero capacho de coco, à
frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a
cabeça e fita-me. E um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas,
as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de
lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com um grande esforço, acaba
de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me
haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter
chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os
animais devem esquecer, enquanto dormem...
Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a
dificuldade dos enfermos graves: acomodando as patas da frente, o resto do
corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto.
Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocupar-me dele: chamar
alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para um
tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso
passar. E ele estava na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão
sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.
Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da
vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste
complexo mundo dos homens.
Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o
patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante
habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com as plantas em
flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o
limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado
esquerdo, desapareceu.
Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça
baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma
criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve ao meu alcance, talvez
tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o, apenas, com uma caridade
inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado, e
tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas de ter
ocupado um lugar que não era o seu.
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